Certa vez, ouvimos de um pensador crítico contemporâneo perguntar sobre a arte do Brasil. Ele questionava o porquê que de tantas produções nacionais, as que ganham visibilidade são as permeadas de temas políticos e de acusações corruptas. Por mais infeliz que seja esta pergunta, é importante percebermos que a arte que produzimos reproduzem o que vivemos, sentimos e sofremos. Se, no tempo atual, a política é a voz que mais grita e se apresenta diante da contemporaneidade da vida, certamente é ela que irá nos conduzir diante de reflexões artísticas que vão desde a música até o cinema. Um bom filme é bom porque ele nos faz pensar sobre a nossa vida. Ele é bom porque nos ajuda a falar sobre nossas dores, nossos sofrimentos e nos ajuda a denunciar o que nos machuca, maltrata e ameaça. E, no Brasil, como em diversos outros países, a democracia tem sido ameaçada e colocada na fogueira por décadas, ameaçando a censura, o racismo e a violência.
Representando o Brasil, o filme de Kleber Mendonça Filho, O Agente Secreto, que traz Wagner Moura no papel principal traz uma história hostil de alguém que tenta sobreviver a uma pressão política de censura e hostilidade. A Noruega chega com Joachin Trier com o trabalho Valor Sentimental que trata a humanidade a partir do ponto de vista de uma família que tentou lidar com o luto e as memórias de uma casa que atravessou gerações. Foi Apenas Um Acidente traz mais um trabalho incomum e corajoso do iraniano e revolucionário Jafar Panahi. Preso por provocar o governo, não se calar diante de uma política desumana, o novo trabalho que representa a França foi filmado às escondidas, tendo que lidar com um tema cruel de vingança e de dor de muita gente que ainda sofre com as deturpações de um sistema que prende, corrói, maltrata, escraviza. Mariam Afshari; Ebrahim Azizi; Majid Panahi e Vahid Mobasseri compõem o elenco.
Todo o filme foi filmado principalmente em persa e inclui diálogos em turco azerbaijano. Panahi ousa nos diálogos e mantém a câmera sempre pronta para capturar o pior (melhor) de cada situação. A história segue pessoas que viveram situações extremas de violência praticada por governos autoritários e sistemas pautados unicamente em atos violentos e de massacre. Partir do ponto de vista de pessoas que sobreviveram a isto e que tentam reconstruir suas vidas, dar sentido à profissão que desempenham é uma narrativa poderosa e inteligente. Panahi teve que se vestir de certa humanidade bastante leal, sincera e com coração humano e fiel. A humilhação que esses personagens passam para representar e reviver um capítulo da história que lutam a cada dia para esquecer é a poderosa arma que o enredo tem a seu favor.
Arrepender-se em servir um líder mal, desumano, cruel e desonesto é a virada do roteiro que acontece quase nos últimos minutos do filme. Continuar sendo bom e lutar para não ceder à violência e à vingança é um ato diário e uma decisão cotidiana que necessita de nós não perdermos de vista quem somos e para onde vamos. Do que somos capazes e o quanto a vida vale para cada um de nós. Todo o filme se veste do mínimo, dos gestos simples e reduzidos, para dizer o quanto cada um ali teve que passar para seguir em frente. Sobreviver é um ato de fé, na maioria das vezes e, neste caso, seguir com a vida é um ato de coragem. Quando se decide não ceder à violência e não se entregar à dor que corrói a alma, o resultado que temos é uma liberdade que jamais puderam experimentar.
Foi Apenas Um Acidente lida com a liberdade e a repressão sofrida entre quatro paredes. Presos entre a política e a falta de moral, encontram um espaço para que a dor física se aflore e grite. Para se libertar deste cômodo, um simples acidente no qual um cachorro é atropelado torna-se o estopim para iniciar a história que lida com a culpa, a vingança, a dor e a ausência de perdão. Longe de investigar um crime do passado, o roteiro nos leva a desencontros que se encontram como uma fotógrafa que prepara o álbum de fotos nas vésperas de um casamento; um antigo conhecido que sofreu as torturas do opressor e o nascimento de um bebê nos 45 do segundo tempo. Tudo isso que se desencontra, de certa forma, conecta-se com o trivial da vida e do dia a dia que entre um silêncio e outro, nossa mente volta àquela memória cruel de violência e opressão torturada no passado.
A tortura não é um acidente histórico: foi um modelo político de governo usado para eliminar pessoas. O poder desumano não é um acidente político: é um processo de aniquilação para empobrecer certas classes sociais. A corrupção não é acidente: é escolha, é decisão, é meta para engrandecer quem apenas nos interessa. Portanto, no belo roteiro de Panahi, aquele acidente não é apenas um acidente, mas é uma porta que se abre diante de nós para nos ajudar a refletir sobre nossas ações, por mais triviais que consideramos que ela seja. Só entente a opressão, a perseguição política e a violência quem passou por ela. E, nesta obra, temos diante de nós alguém que sobreviveu a tudo isso e conseguiu, da forma mais fidedigna possível, transmitir nas telas da Sétima Arte.
O cinema de Panahi consegue se vestir de certa humanidade, mesmo quando ele toca no desumano, mesmo que a história seja cruel e desumana. O que ele faz de melhor é dar voz e lugar a quem, de fato, experimentou as dores da vida e as superou da única forma que era possível superar. Seguir em frente é um adágio muito simples de dizer, mas não é tão objetivo e simples para tornar real. A cada nascer do sol, estas pessoas precisam reafirmar o propósito de suas vidas e aproveitar a luz do dia para fazer o bem aos outros, mesmo que esse bem não foi feito a eles quando mais precisavam. Foi Apenas Um Acidente acumula 04 indicações ao Globo de Ouro 2026: Melhor Filme de Drama; Melhor Direção; Melhor Filme Internacional e Melhor Roteiro.
Por Dione Afonso | Jornalista