04 Nov
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Natural de Recife, o cineasta brasileiro possui seis longas metragens em sua filmografia. O suficiente para reconhecer o grande potencial que Kleber Mendonça Filho possui ao conseguir extrair da vida, da cidade e dos dramas brasileiros, histórias reais e de profundos dramas históricos. Em 2001, ele se lançou com Vinil Verde, uma simples casa vira palco de suspense e medo; já com O Som ao Redor, (2012), vimos como Mendonça Filho trabalha os sons e batidas como elementos fortes e eficazes a favor do medo e do suspense crescente; em 2016, Aquarius, protagonizado por Sônia Braga, fez do próprio apartamento da protagonista ambiente de memória e resistência. Os mais recentes e frescos em nossa memória, Bacurau, de 2019, trouxe o tema da vigilância e da violência e, Retratos Fantasmas (2023), que é o gancho pioneiro que se conecta diretamente com O Agente Secreto. 

Não se trata, exatamente de um “agente secreto” que embarca em uma jornada heroica a favor da humanidade, não. O personagem de Wagner Moura, o protagonista, é alguém que, encurralado de todos os lados, só está tentando sobreviver. No elenco, Maria Fernanda Cândido é Elza, uma mulher influente, altruísta e que decide por causas humanitárias; a dupla Kaiony Venâncio e Gabriel Leone compõe uma dupla de assassinos de aluguel; Tânia Maria é aquele alívio cômico como Dona Sebastiana, mas sua personagem é quase que uma coadjuvante perfeita e que sempre rouba a cena quando aparece. O elenco ainda conta com Udo Kier; João Vitor Silva; Thomas Aquino e Carlos Francisco. 


Força de atuação de Tânia Maria 

É curioso que a personagem que acreditou ser a menos relevante, acaba se tornando o elo que “costura” toda a trama de dor, sofrimento, indiferença e medo da morte. Com 77 anos de idade, a atriz se destaca por sua discrição e sua força de atuação. O filme nos localiza num Brasil de 1977, na Semana do Carnaval e numa cruel Ditadura Militar. Por este último tema, é inevitável não lembrarmos, com insistência, de Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, vencedor do Oscar e protagonizado por Fernanda Torres. Contudo, enquanto o trabalho de Salles focou numa narrativa mais emotiva e de fortes momentos de cena, Mendonça Filho se concentra em algo mais sutil, delicado e com o anseio por atenção. Através da personagem de Tânia, Dona Sebastiana revela que num país em que a indiferença, a xenofobia, a perseguição ao outro diferente, ser “cortês” é um crime jurado de morte. 

Por conta do clima de negligência e de negação social, um “cheiro” de morte atua não como entidade, mas como uma forte e poderosa personagem, que, sai de nosso imaginário e passa a habitar as realidades presentes. Este odor mortal só desaparece quando Dona Sebastiana aparece. Nela, as cores vibram, a risada é garantida e, talvez, por conta de sua simplicidade e ingenuidade, parece que a segurança é certeira. É curioso, e ao mesmo tempo bonito, como que podemos nos sentir seguros e protegidos ao lado de uma senhora que, aparentemente frágil, consegue sustentar uma ação de humanidade forte e eficaz. O Brasil atual tem carecido de ações como esta: de pessoas que, independentemente de suas limitações, ainda se preocupam com as limitações de outrem, dando a elas, ou, pelo menos tentando dar um mínimo de dignidade humana e alegria serena. 

Há, no roteiro piadas sutis, mas que não escondem a política corrupta e a sociedade mergulhada em trambiques e nos famosos “jeitinhos” brasileiros”. O ponto alto deste sarcasmo chega quando Mendonça Filho decide “dar vida” a uma lenda urbana, a da “Perna Cabeluda”, que acaba se tornando mais que um artifício para justificar a presença do membro humano encontrado na boca de um tubarão, mas, os poucos segundos em que a “perna ganha vida”, ela torna-se um símbolo de denúncia e de justiça que precisa ser feita pelas próprias mãos... ou... seria... “pelas próprias pernas”. A Diretor de Fotografia, Evgenia Alexandrova deu o caráter de filme de época sem perder a naturalidade. Cores granuladas, tons mais rústicos que garantem a boa experiência cinematográfica. 


Maria Fernanda Cândido e a virada de ato 

Não só de ato, mas a virada do clímax de todo o roteiro que não tem pressa e insiste nas perguntas que não parecem encontrar respostas. O filme de Mendonça Filho, desde a primeira cena, assume o seu caráter thriller por conta do ambiente enigmático, de forte suspense e daquela leve ansiedade. O mistério é a engrenagem mais poderosa e que dá movimento a toda a narrativa. Cândido dá vida à Elza, uma mulher que o roteiro não insiste em explicar quem é e nem de onde veio, mas que se trata de alguém influente, parece que forte e capaz de mudar o rumo de uma história marcada pela injustiça e pela criminalidade. 

O filme de Mendonça Filho “fede” à hostilidade. O roteiro é calmo, sutil, enigmático e sem atropelos. A força se encontra nos diálogos muito bem colocados e atuados. A cidade, nos trabalhos do cineasta ganha força com a presença urbana, Recife ganha vida e voz. A cidade “fala”, respira, xinga e até chora. Neste contexto, Moura brilha, exatamente por fazer de Marcelo/Armando um personagem irrelevante para a trama; personagem que precisa ser esquecido pela narrativa da dura realidade violenta e sem pudor. Moura apresenta um personagem introspectivo, medroso, mas, ao mesmo tempo capaz de lutar se for preciso. Ganha destaque a trilha sonora, que embala as ações de cada personagem e até das pessoas “invisíveis” nas ruas. 

Depois de Dona Sebastiana, outro ponto de segurança para Moura é o cinema São Luiz. Onde ele se refugia, conecta-se com sua personalidade e se encontra com sua gente. É onde ele e Elza conversam, onde, com seu sogro, vive uma liberdade estranha e leve. A metáfora aqui é bela e cheia de significados: o cinema surge como forma de resistência, de construção da identidade, de história, memória e de vida. Por mais encontramos desconfiança e desonestidade para todo o lado que olhamos, estamos diante do trabalho mais ousado da carreira de Mendonça Filho. Uma obra grandiosa na mesma proporção em que é triste. O trabalho se conclui com destaque àqueles que insistem em se tornar inimigos do conhecimento e terroristas da educação. Um retrato brasileiro que insiste em se manter de pé até hoje. O personagem de Moura se encontrou numa encruzilhada de sua vida: educador, fluente no inglês, defensor da educação pública e motivador das pesquisas educacionais, torna-se inimigo dos grandes chefes da indústria, dos donos da roda da fortuna do Brasil, e dos corruptos políticos. Enquanto houve uma espécie de “redenção” com Eunice Paiva de Fernanda Torres, Armando/Marcelo não encontrou este “minuto de graça” em sua vida. Mas... é o Brasil...



Por Dione Afonso  |  Jornalista

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