21 Nov
21Nov

Escritor luso-angolano, português Valter Hugo Mãe teve o presente de poder ver uma adaptação para o cinema de um dos seus livros. O diretor brasileiro Daniel Rezende comandou a obra O Filho de Mil Homens que é revestida de forte sensibilidade a respeito dos sentimentos humanos e o que provocam quando são usados para ferir alguém. Valter Hugo tem a sensibilidade explodindo em suas palavras. Ele é aquele escritor que possui a rara capacidade de conseguir colocar em papel aquilo que sentimos no mais profundo e enterrado de nosso ser. Daniel assume, portanto, uma tarefa difícil e quase impossível: a de transportar para as telas, algo tão valioso, perigoso e assustador como os sentimentos. 

Rodrigo Santoro traz, uma interpretação visceral. Santoro, ao lado de Rebeca Jamir, Miguel Martines e Johnny Massaro formam o quarteto do silêncio que tudo fala; da solidão que tudo experimenta; da paz que tudo assusta e da cura que tudo dói. Os olhares, as palavras que não são ditas, os sentimentos que não são revelados é o grande susto que a direção de Daniel nos apresenta. O trabalho é feito a partir de pequenos detalhes que surgem na história como peças soltas e que só vão revelar o quebra-cabeças montado no ato final. 


Sonhos velhos 

Crisóstomo, personagem de Santoro é o primeiro que surge na tela. Um pescador solitário que tenta se convencer de uma companhia através de um boneco de pano que ele costurou. Enquanto ele sonha em se tornar pai, Camilo (Martines) é o filho sem pai, sem mãe e sem família. Criado por falsos avós, o adolescente cresceu e foi educado numa estrutura homofóbica, conservadora e rude. Ao conhecer Crisóstomo, ambos começam a se transformar. A solidão dá lugar ao encontro improvável. Enquanto um tenta aprender o que significa ser pai de alguém que não gerou, o outro se entrega por completo a um pai que sempre sonhou ter. 

Rebeca Jamir interpreta Isaura, filha também de uma família supersticiosa, preconceituosa e tradicional. Seguindo os moldes estruturais da casa, a jovem cresce amedrontada com a vida que aprendeu a viver. Casou-se por mandato e não por amor com o jovem Antonino que era castigado pela mãe Matilde (Inez Silva), que acreditava que o filho era possuído por espíritos maus porque ele tinha atração por outros homens. O casamento era a forma de curar seus sentimentos desviados e salvar o futuro da família. Isaura também tem a improvável chance de conhecer Crisóstomo. Aliás, toda a história é construída a partir de encontros improváveis, incomuns, não planejados, impossíveis. Mas são desses encontros que tanto o escritor da história, quanto o diretor da adaptação resolve nos apresentar a cura diante de tantas feridas que a sociedade nos provoca. 

O ambiente bucólico também é algo que chama a atenção. A cada capítulo que Rezende vai nos apresentando, as histórias separadas encontram um denominador comum. Desde a orfandade de Miguel, com a morte dos avós, até a ridicularização da mulher com nanismo, encontramos as casas, chãos e paredes em tons cinzentos, sem vida e sem alegria. É um paralelo que nos diz que o lugar também sente nossas dores. Se a mulher é violentada, sua vida perde a alegria e a cor. As casas também. Se um homossexual é espancado até à beira da morte, até as borboletas são escuras, sem alegria, as portas, pretas e até o altar da mãe carece de uma representação de fé, já que ela reza pela cura de um filho que nunca esteve doente e nem possuidor de uma praga. 


O grito libertador 

Talvez, o ponto alto do filme, onde habita toda a força narrativa da história, está quando Crisóstomo, Antonino e Isaura, à beira do mar, gritam, gritam, gritam e choram, deixando tudo o que sentem e tudo o que dói neles sair, ir embora com as ondas do mar. A esta cena, talvez se complemente com a do abraço de Camilo. Aquele abraço diz tudo: eu te perdoo, eu te amo, eu te acolho, você é especial, você é bonito, você é importante para mim. Percebam que a casa de Crisóstomo não é cinza, não é escura, ali havia vida. Uma vida solitária que encontrou companhia, presença, aconchego, fé e liberdade. 

O Filho de Mil Homens, enfim, encontra a razão do título no capítulo final. Como cada um dos quatro ganhou a própria história, o último foi Crisóstomo, filho de uma mulher que, para sobreviver vendia-se aos homens daquela vila. Foi morta na porta da mesma Igreja que Camilo adquiria a Catequese dos “santos e puros”. A cena em que Crisóstomo não consegue entrar na Igreja nos machuca, bate lá no fundo do estômago da gente, pois ali, naquele pátio, sua mãe foi amarrada, espancada até a morte. O filme e o livro de Valter Hugo Mãe são sensíveis, sutis, poéticos, mas uma poesia que revela dores sociais muito presentes entre nós, que mesmo no silêncio, muita gente grita, sente dor, é abusada, machucada, violada e morta. Mas, no final, há o grito!




Por Dione Afonso   |   Jornalismo

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