Nascida em 1929, no auge dos seus 95 anos de idade e com seus 75 anos de carreira, Fernanda Montenegro teve sua entrada na TV ainda na era da TV Tupi, em 1950, quando, através do teatro e das telas da TV começou a encantar o público com seus personagens e sua eficácia na atuação. Ícone da TV brasileira, rainha das novelas, patrimônio do teatro nacional e um grande tesouro do cinema brasileiro, Montenegro participou de mais de 20 filmes e de 50 novelas, fora o teatro e seriados. Atuou em mais de 7 emissoras de televisão. Em 2013 tornou-se a primeira atriz a vencer o Emmy Internacional de Melhor Atriz por seu papel na novela Doce de Mãe e, em 1998 tornou-se a primeira mulher latino-americana e brasileira a receber uma indicação como Melhor Atriz no Globo de Ouro por seu papel em Central do Brasil, dirigido por Walter Salles e que venceu o BAFTA, o Globo de Ouro e ainda foi indicado ao Oscar de Melhor Filmes Internacional.
Nada do que escrevermos aqui estará à altura do que Fernanda Montenegro representa e simboliza para a Arte do Brasil. Montenegro está além do que as letras são capazes de dizer e do que nossos pensamentos são capazes de mensurar. Em seu penúltimo trabalho para as telas – assim disse ela quando terminou de gravar a comédia Velhos Bandidos ao lado de Ary Fontoura – o filme Vitória é baseado numa história real numa das favelas mais emblemáticas do Rio de Janeiro, porta da frente de Copacabana. Montenegro dá vida à dona Nina que, da janela de seu apartamento decide filmar toda a ação maliciosa e violenta dos moradores da favela ao lado. Entre uma fita e outra, Nina desmonta um esquema gigantesco de homicídio, propina e violência envolvendo moradores do morro, policiais e políticos que se beneficiavam do crime organizado. No elenco, Linn da Quebrada, Alan Rocha, Sacha Bali e Laila Garin nos ajudam a contar esta história.
Toda a força do filme se ancora na riqueza de detalhes em cada expressão e movimento da protagonista Nina. Montenegro nos entrega uma personagem idosa, já marcada pela luta da vida. Luta por vezes injusta ou ainda, uma luta desonesta e cheia de marcas de dor. Nina é uma moradora pacífica, de bom coração, misericordiosa. Ela faz com que sua vida tenha sempre um propósito, uma justificativa para estar viva e poder sair de casa e caminhar pelas suntuosas calçadas de Copacabana. Porém, tudo muda quando um tiroteio crava na parede verde de sua casa uma bala. Decidida a economizar, ela compra uma câmera filmadora para que possa apresentar provas à delegacia de polícia de que um crime e uma vida triste, perigosa e banal se desenvolve ao lado de seu apartamento.
O bolo com um tom forte de amarelo que se destaca sobre o jogo de cozinha em tons claros, quase brancos. O disco de vinil, e, quando olha pela janela e pega sua filmadora, até mesmo a cor do morro se destaca. O cineasta Andrucha Waddington faz do roteiro assinado por Paula Fiúza uma oportunidade em elevar a força que uma mulher solitária, sem ninguém e de idade avançada pode ter quando decide viver com um objetivo: ter paz e ser feliz. A cada sorriso que Montenegro concede frente às telas nos transmite aquela segurança e um poder de atuação que só ela é capaz de nos transmitir. Vitória não é só sobre um desmantelamento criminoso e violento, mas é sobre quantas violências nós somos capazes de suportar sem nos deixar vencer.
Destacamos ainda a força corajosa de Linn da Quebrada, a moradora Bibiana, vizinha de Nina. Linn que é cantora, compositora e atriz trans brasileira e que no filme também interpreta uma mulher trans que enfrenta olhares discriminatórios e até maldosos. Numa das reuniões com os moradores do prédio, o síndico interpretado por Thelmo Fernandes a exclui do sistema de votação justificando-se por Bibiana não ser dona do imóvel. Contudo, o olhar discriminatório e de sarcasmo para a personagem nos faz ter nojo dele. Estes pequenos detalhes que a câmera registra é o que nos coloca frente a frente, atentos ao que estamos prestes a testemunhar.
No primeiro ato, vemos Nina, após ser tomada por um grande susto por barulhos de tiroteio na rua, ela deixa cair no chão uma xícara de porcelana, onde tomava o seu café. Não esperávamos o que aquela cena poderia sugerir para os minutos seguintes, mas, Nina, mesmo tendo em seu armário outras xícaras iguais, ela decide juntar os cacos do chão e guardá-las. Depois, com uma supercola, ela passa algum tempo no segundo e terceiro atos, colando caco por caco, até, numa das cenas finais, perceber o que tudo aquilo representava para ela. O que está em jogo aqui não são os cacos da xícara, mas os cacos da narrativa, os cacos que a Nina terá que juntar até se tornar Vitória. Os cacos de uma vida que ela passou décadas para juntar e chegar aonde chegou hoje. E, mesmo assim, com todos os cacos unidos, nenhuma supercola será capaz de impedir que o líquido escape por entre as frestas e entorne sobre a toalha da mesa.
E é assim: juntando, reunindo, colando os cacos imperfeitos desta xícara da vida que vamos interpretando, entendendo, compreendendo e lendo os fatos imperfeitos da nossa história. Vitória, a partir de agora será assim: novos cacos são os novos lugares para onde terá que ir. Com novo nome, nova identidade, nova casa, novos amigos... mas, vivendo naquela certeza de que a xícara quebrada e colada viveu o seu propósito. Ela teve um objetivo e a violência daquele morro nunca mais foi a mesma depois de se deixar quebrar e desmontar um esquema político e sujo na falta de segurança e de políticas pública de proteção, educação, saúde e de cidadania. Vitória é um filme necessário e atual. É preciso conferir esta obra e pensar sempre um pouco mais quando decidimos não votar a favor da arte brasileira, não valorizar o cinema e não se importar com o que o teatro é capaz de fazer na nossa vida e educação de nossa história.
Por Dione Afonso | Jornalista