07 Jul
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Nascida em 1929, no auge dos seus 95 anos de idade e com seus 75 anos de carreira, Fernanda Montenegro teve sua entrada na TV ainda na era da TV Tupi, em 1950, quando, através do teatro e das telas da TV começou a encantar o público com seus personagens e sua eficácia na atuação. Ícone da TV brasileira, rainha das novelas, patrimônio do teatro nacional e um grande tesouro do cinema brasileiro, Montenegro participou de mais de 20 filmes e de 50 novelas, fora o teatro e seriados. Atuou em mais de 7 emissoras de televisão. Em 2013 tornou-se a primeira atriz a vencer o Emmy Internacional de Melhor Atriz por seu papel na novela Doce de Mãe e, em 1998 tornou-se a primeira mulher latino-americana e brasileira a receber uma indicação como Melhor Atriz no Globo de Ouro por seu papel em Central do Brasil, dirigido por Walter Salles e que venceu o BAFTA, o Globo de Ouro e ainda foi indicado ao Oscar de Melhor Filmes Internacional. 

Nada do que escrevermos aqui estará à altura do que Fernanda Montenegro representa e simboliza para a Arte do Brasil. Montenegro está além do que as letras são capazes de dizer e do que nossos pensamentos são capazes de mensurar. Em seu penúltimo trabalho para as telas – assim disse ela quando terminou de gravar a comédia Velhos Bandidos ao lado de Ary Fontoura – o filme Vitória é baseado numa história real numa das favelas mais emblemáticas do Rio de Janeiro, porta da frente de Copacabana. Montenegro dá vida à dona Nina que, da janela de seu apartamento decide filmar toda a ação maliciosa e violenta dos moradores da favela ao lado. Entre uma fita e outra, Nina desmonta um esquema gigantesco de homicídio, propina e violência envolvendo moradores do morro, policiais e políticos que se beneficiavam do crime organizado. No elenco, Linn da Quebrada, Alan Rocha, Sacha Bali e Laila Garin nos ajudam a contar esta história. 


A riqueza dos detalhes 

Toda a força do filme se ancora na riqueza de detalhes em cada expressão e movimento da protagonista Nina. Montenegro nos entrega uma personagem idosa, já marcada pela luta da vida. Luta por vezes injusta ou ainda, uma luta desonesta e cheia de marcas de dor. Nina é uma moradora pacífica, de bom coração, misericordiosa. Ela faz com que sua vida tenha sempre um propósito, uma justificativa para estar viva e poder sair de casa e caminhar pelas suntuosas calçadas de Copacabana. Porém, tudo muda quando um tiroteio crava na parede verde de sua casa uma bala. Decidida a economizar, ela compra uma câmera filmadora para que possa apresentar provas à delegacia de polícia de que um crime e uma vida triste, perigosa e banal se desenvolve ao lado de seu apartamento. 

O bolo com um tom forte de amarelo que se destaca sobre o jogo de cozinha em tons claros, quase brancos. O disco de vinil, e, quando olha pela janela e pega sua filmadora, até mesmo a cor do morro se destaca. O cineasta Andrucha Waddington faz do roteiro assinado por Paula Fiúza uma oportunidade em elevar a força que uma mulher solitária, sem ninguém e de idade avançada pode ter quando decide viver com um objetivo: ter paz e ser feliz. A cada sorriso que Montenegro concede frente às telas nos transmite aquela segurança e um poder de atuação que só ela é capaz de nos transmitir. Vitória não é só sobre um desmantelamento criminoso e violento, mas é sobre quantas violências nós somos capazes de suportar sem nos deixar vencer. 

Destacamos ainda a força corajosa de Linn da Quebrada, a moradora Bibiana, vizinha de Nina. Linn que é cantora, compositora e atriz trans brasileira e que no filme também interpreta uma mulher trans que enfrenta olhares discriminatórios e até maldosos. Numa das reuniões com os moradores do prédio, o síndico interpretado por Thelmo Fernandes a exclui do sistema de votação justificando-se por Bibiana não ser dona do imóvel. Contudo, o olhar discriminatório e de sarcasmo para a personagem nos faz ter nojo dele. Estes pequenos detalhes que a câmera registra é o que nos coloca frente a frente, atentos ao que estamos prestes a testemunhar. 


A metáfora da xícara quebrada 

No primeiro ato, vemos Nina, após ser tomada por um grande susto por barulhos de tiroteio na rua, ela deixa cair no chão uma xícara de porcelana, onde tomava o seu café. Não esperávamos o que aquela cena poderia sugerir para os minutos seguintes, mas, Nina, mesmo tendo em seu armário outras xícaras iguais, ela decide juntar os cacos do chão e guardá-las. Depois, com uma supercola, ela passa algum tempo no segundo e terceiro atos, colando caco por caco, até, numa das cenas finais, perceber o que tudo aquilo representava para ela. O que está em jogo aqui não são os cacos da xícara, mas os cacos da narrativa, os cacos que a Nina terá que juntar até se tornar Vitória. Os cacos de uma vida que ela passou décadas para juntar e chegar aonde chegou hoje. E, mesmo assim, com todos os cacos unidos, nenhuma supercola será capaz de impedir que o líquido escape por entre as frestas e entorne sobre a toalha da mesa. 

E é assim: juntando, reunindo, colando os cacos imperfeitos desta xícara da vida que vamos interpretando, entendendo, compreendendo e lendo os fatos imperfeitos da nossa história. Vitória, a partir de agora será assim: novos cacos são os novos lugares para onde terá que ir. Com novo nome, nova identidade, nova casa, novos amigos... mas, vivendo naquela certeza de que a xícara quebrada e colada viveu o seu propósito. Ela teve um objetivo e a violência daquele morro nunca mais foi a mesma depois de se deixar quebrar e desmontar um esquema político e sujo na falta de segurança e de políticas pública de proteção, educação, saúde e de cidadania. Vitória é um filme necessário e atual. É preciso conferir esta obra e pensar sempre um pouco mais quando decidimos não votar a favor da arte brasileira, não valorizar o cinema e não se importar com o que o teatro é capaz de fazer na nossa vida e educação de nossa história.




Por Dione Afonso  |   Jornalista

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