13 Aug
13Aug

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman [1925-2017], deixou sua marca registrada quando desenhou o nosso mundo atual como um mundo liquidificado. Tudo se liquefez. Vida Líquida [2007], Medo Líquido [2008], Amor Líquido [2004], Modernidade Líquida [2001], Tempos Líquidos [2007], Vigilância Líquida [2014], Mal Líquido [2019], são alguns dos títulos em que o pensador despeja sobre nós a fragilidade humana e das relações que estão se perpetuando na sociedade em que vivemos. Esta introdução acaba tornando-se interessante diante do trabalho que vamos prestigiar que é o da cineasta sul-coreana Celine Song. Há dois anos, Song fez de Vidas Passadas uma ótima estreia sob a esteira da direção. Seu filme contou uma história bastante sólida sobre amor, amizade, escolhas, vocação e sobre aquilo que perpetua. Ou seja, algo que caminha na direção contrária às reflexões de Bauman. 

Dois anos depois, Song nos apresenta Amores Materialistas. Desta vez, as relações e sentimentos tornam-se, não só líquidas, que se esvaem entre os dedos, mas, negociáveis, tangíveis, comerciáveis. Song não titubeia ao nos apresentar algo que pode se encaixar na triste e traiçoeira “roda da fortuna”, num sistema de compra e venda, frio e calculista. A história segue uma casamenteira profissional, Lucy, vivida por Dakota Johnson. Lucy tem um passado com John [Chris Evans], um relacionamento que não deu certo, pois, para ela, o amor é contabilizado e “comprado”. E vive num triângulo não tão amoroso assim com o milionário e bem-sucedido, Harry [Pedro Pascal]. Nos entrelaçamentos destas três vidas, os sentimentos tornam-se estatísticas, encaixam em padrões “aceitáveis” de segurança e prazer... mas... como fica o amor? 


Um outro lado de Song 

Não podemos ir ao cinema contando com as experiências incríveis que vivemos em Vidas Passadas. Se fizermos isso, a decepção está garantida. Contudo, há elementos em que as histórias conversam entre si. Primeiro, o elemento das escolhas que desenham o nosso amanhã. Isso é perceptível quando o filme decide nos mostrar brevemente o passado de John e Lucy, quando esta decidiu romper com o que vivia e sentia pelo namorado/noivo, pois ela sonhava com um amor que desse a ela segurança financeira, bons restaurantes, roupas da moda e uma vida de luxo. Mais uma vez, agora, voltando ao tempo presente, Lucy, quando encontra toda esta segurança ao lado de Harry, percebe que nem sempre as estatísticas nos falam de amor e nos fazem sentir seguros e felizes. 

Outro elemento em que as duas obras de Song conversam perfeitamente é a respeito da felicidade. Se, no primeiro filme, o que definiu a felicidade dos protagonistas foi a amizade que perdurou as intempéries do tempo e as escolhas divergentes de caminhos, sobretudo profissional, agora, é, novamente a amizade o sentimento que quebra a liquidez de um trabalho puramente calculado, que analisa dados e padrões de encaixe. John e Lucy precisaram tornar-se amigos novamente, para que o amor pudesse encontrar entre os dois a porta aberta para o amanhã. 

A escolha cinematográfica de Song também é algo que nos deixa encantados pela história que narra. Shabier Kirchner – que também trabalhou em Vidas Passadas – faz um excelente trabalho de fotografia, enquadrando e valorizando cada detalhe. Song é uma mulher de detalhes: o cigarro, o tom vermelho sobre um azul forte e que cintila, um lençol branco num apartamento frio e cinza. Aliás, Song consegue colocar sentimentos até nos móveis. Curiosamente, o apartamento milionário de Harry é frio e sem sentimento, enquanto o quartinho pobre e sem aparatos de John é vivo, mesmo descascado, tem cores e alegria. Ali mora sentimentos, enquanto as paredes cinzas não conseguem nos transmitir algo bom para se sentir. 


Uma “rom-com” sem graça 

Mesmo não sendo exatamente do gênero, mas o filme foi vendido assim, a obra de Celine Song tem um tom cômico, mas que não exala muita graça. Pode ser uma comédia romântica, mas que pode, também, nos elevar a outros elementos do gênero. O que é bastante válido destacar é que o filme só funciona porque o trio protagonista de Pascal, Johnson e Evans funciona mais do que bem. É notório que eles querem fazer a história acontecer e se esforçam muito para isso. O roteiro que Song assina também é forte, tem potencial e isso dá coração à toda história. O filme pode e deve ser lido sob a ótica das relações que insistentemente construímos e que nós nos esforçamos para mantê-las. 

A experiência é positiva. Carismática e engraçado em pequenas dosagens de um melodrama que até convence se nos esforçarmos um pouquinho. Em Amor Líquido, livro de Bauman lançado em 2004 o autor fala das relações que hoje são construídas sob as bases da modernidade passageira e dos sentimentos efêmeros. Também chama a atenção para aqueles “amores” que são medidos pelos likes, pelas Redes Sociais e pelas histórias contadas sob uma maquiagem que manipula e esconde os verdadeiros sentimentos. Para Bauman, isto não é amor, trata-se apenas de uma pequena aventura que nos faz apaixonar por outrem por 24 horas e depois passa, o que nos faz buscar novas pessoas capazes de nos fazer apaixonar por um dia, novamente. E de novo, e de novo, e de novo...




Por Dione Afonso  |  Jornalista

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