A temporada de premiações que aclamam os melhores do ano na TV e no cinema está aberta. O silencioso Sonhos de Trem, dirigido por Clint Bentley começou no Critics Choice Awards angariando três indicações: Melhor Filme, Melhor Roteiro Adaptado, que Bentley assina ao lado de Greg Kwedon e Melhor Fotografia por Adolpho Veloso. Três dias depois conhecemos os indicados ao Globo de Ouro 2026 e, veio, surpreendendo a todos a indicação de Joel Edgerton na Categoria de Melhor Ator em Filme de Drama. A surpresa se dá não pela indicação do ator, já que Edgerton entrega um primoroso trabalho revelando um personagem cruelmente marcado pela vida, pelos sofrimentos, solidão e pelo luto.
No Globo de Ouro, Joel Edgerton está concorrendo ao lado do brasileiro Wagner Moura, por “O Agente Secreto”; Oscar Isaac, por “Frankenstein”; Dwayne Johnson, por “Coração de Lutador” e Jeremy Allen White, por sua atuação na cinebiografia “Springsteen: Salve-me do Desconhecido”. Esta é a única indicação que o longa recebeu na 83ª edição. O filme de Clint Bentley ainda conta com a majestosa presença de Felicity Jones, Kerry Condon, Will Patton e paul Schneider. Chegou silenciosamente na gigante do streaming, sem alarde, sem grandes divulgações. Assim também é a áurea toda da história que o filme se dispõe a contar: o silêncio que dói, o grito silencioso e as chamas que tudo destrói. Estamos diante dos Estados Unidos ainda sofrido pelas marcas de uma Guerra Civil que foi difícil se recuperar. Contexto marcado pelo anonimato, xenofobia, ódio aos imigrantes, crise econômica e violência trabalhista.
A narrativa inicial já é desconcertante e perturbadora: nosso protagonista tem dúvidas quanto ao nome, não sabe ao certo sua idade, não ter certeza do ano que nasceu, quiçá do mês e dia. Edgerton dá vida a este ser que a narrativa embasada na obra do romancista Denis Johnson convencionou chamar-se de Robert Grainier. Órfão, sem família e sem ninguém que pudesse lhe ensinar sobre a vida, Grainier cresceu como pôde e tornou-se um homem silencioso, marcado pelas faltas que a vida lhe proporcionou. Homem pouco social, tornou-se um jovem e um adulto muito bem afeiçoado, nada preguiçoso e honesto com o trabalho e com as pessoas. Na fase adulta ele conheceu a bela Gladys, uma jovem religiosa que o encantou com sua singeleza e seu sorriso.
Ambos construíram juntos uma vida ancorada em sonhos simples: uma singela casa no campo, com janela voltada para o lago, árvores verdes e bem cuidadas ao redor, uma vida silenciosa afastada do centro da cidade e protegida contra a guerra que o mundo empreendia naquele momento. Robert e Gladys era aquele jovem casal que sabia sonhar e dava valor ao que os sonhos poderiam lhes ensinar, cultivar. Neste momento a história aprofundada por Bentley esclarece melhor o ofício de Robert. Por conta da guerra, houve a escassez de trabalhos na cidade, então ele se enveredava pelas construções longínquas de extrações de madeira, construções de ferrovias, erguendo pontes e abrindo estradas... visitava a família de tempos em tempos e seu coração sofria com o fato de não acompanhar o crescimento da filha. Com o surgimento de ferrovias e pontes sendo construídas, o trabalho o obrigava a cada semana ir cada vez para mais longe para que o país pudesse se reconectar com o restante do mundo... enquanto ele se desconectava de seu lar e sua família.
Temendo um dia não conseguir retornar para casa, por conta dos grandes perigos que o trabalho manual oferecia, parece que a vida resolveu machucar ainda mais aquele simples homem: um incêndio atingiu o povoado onde sua família morava e o fogo devorou tudo e todos os que encontrou pela frente, inclusive sua cabana com esposa e filha. Uma dor tão dura, cruel, profunda e difícil de cicatrizar, que o roteiro nos permitiu sofrer junto com Robert. O roteiro é incrível e perspicaz ao nos oferecer tamanha experiência de dor, solidão e do luto. O personagem de Edgerton precisou lidar com vários lutos no decorrer da sua vida. O primeiro na infância, quando perde os pais, o segundo, na vida adulta quando perde a família. Sonhos de Trem talvez não seja só sobre superação, mas é sobre a vida e como nós podemos a encarar com o que ela tem a nos oferecer.
O trabalho de Adolpho Veloso deveria ter sido melhor reconhecido. Sua indicação ao Critics Choice deveria ter se repetido no Globo de Ouro. Cada imagem fala de dor. As cores saturadas, escuras revelam um tom sombrio assim como é sombria a solidão. Até o fogo é sem vida, pois a função dele nesta narrativa não é a de gerar calor e vida, mas a de destruir e queimar. As cinzas e a neve são marcas de um passado que doeu, que nos fez sofrer e chorar. Edgerton mantém um choro contigo, lágrimas silenciosas... Em nenhum momento o roteiro o permite explodir, gritar ou chorar alto, mas é tudo muito contido, abafado dentro do próprio peito. Portanto, o filme termina como começa: no silêncio de uma vida que não experimentou muito sobre a felicidade, mas exagerou nos experimentos de dor. Robert Grainier morreu sem nunca poder ter falado ao telefone e nem usufruir da eletricidade, viu pela TV o tal homem na lua, morreu sem conhecer seus pais e sem deixar herdeiros...
Igual merecimento deve ter o nosso narrador. Desde o primeiro segundo do filme até seu último, somos guiados pela voz de Will Patton, que transborda sentimento, emoção e em cada sílaba ele deixa exalar proximidade, carisma e paixão pela história que está disposto a nos contar. Somos guiados por sua voz e pelos passos de Edgerton que, a cada partida, ele ruma ao desconhecido necessário. A cada árvore derrubada, a cada machadada contra a madeira e a cada retorno para a sua casa, a voz de Patton parecia estar nos entregando um monólogo, estes que assistimos numa peça teatral. A crítica afirmou que este é o melhor filme que a Netflix entregou em 2025, e, de fato, a obra é merecedora de nossa atenção. O anonimato no filme nos persegue desde Robert até seus companheiros de trabalho, lenhadores e artesões ferroviários que mal ele sabia o nome, muitos deles ele nem se quer ouviu o tom de voz que possuíam.
Por Dione Afonso | Jornalista